quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Por Ivan Canan

Sobre pequenez humana e a morte...
Morreu Marisa Letícia Lula da Silva. Ela foi primeira dama do país por 8 anos. Até porque sua antecessora também recebeu esse "título", era chamada de Dona Marisa. Morreu Dona Marisa, esposa de Lula.
Lula é um político. Não gostamos de políticos. Políticos deveriam ser aquelas pessoas que conseguem fazer quem pensa diferente negociar entre si. Políticos tem manipulado as pessoas que pensam diferente para que briguem entre si para lhes dar poder, enquanto eles negociam entre eles. Não gostamos de políticos porque políticos estão nos fazendo de idiota. Lula é político.
Lula também é um simbolo. Ele, bem intencionado ou não, foi quem melhor liderou a convergência de todos os discursos produzidos dos saberes que emergiram do sofrimento das pessoas em suas vidas privadas de dignidade. Camponeses, mulheres, oprimidos, trabalhadores da industria, pequenos empreendedores, moradores em regiões esquecidas, todo aquele que conseguia expressar dor, e cuja voz se reunia a outros que também expressavam voz pela dor da opressão, todos estes produziram saberes que foram abraçados por Lula. Bem intencionado ou não, ele ouviu esses saberes e tentou, com as elites, negociar para que essas vozes fossem ouvidas. Todo aquele que sente ou sentiu dor, vê nesse simbolismo de Lula algo bom. Podem não gostar do político, mas compreendem a grandiosidade da liderança (e esperam, ansiosos, que outros lideres também ouçam suas vozes).
Dona Marisa, como esposa de Lula, esteve do lado do político e do líder. E neste ponto, é preciso compreender melhor o dia a dia de alguém que ocupe uma liderança. Caso fosse Lula o Paulo Skaf, ele estaria liderando um grupo bastante pequeno em comparação com aquele que liderou. Seriam alguns poucos milhares de empresários. Cada empresário, entretanto, teria tanto dinheiro, que sua influência sobre esse grupo poderia impactar profundamente a sociedade. Todos os recursos lhe estariam disponíveis: poderia comprar propaganda, poderia comprar jovens obcecados para fazer terrorismo nas redes sociais e outros para organizar manifestações. Poderia pagar por manifestações, assim como poderia pagar por pesquisas que indicassem exatamente o que uma professora carioca humanista ou um empreendedor do centro oeste gostariam de ouvir, para incorporar aos seus discursos e fazer com que estes, também, se tornem gratuitamente defensores obsessivos de suas ideias (mesmo que contrariando suas posturas até então defendidas). Com dinheiro, tudo que puder ser mensurado pode ser comprado.
Mas Lula foi o líder que buscou representar a multidão cuja voz saia por lamentos. Cuja miséria não se refletia tão somente na falta de comida para três refeições, mas também no seu vocabulário: pessoas tão carentes que sentem dor mas não sabem como expressá-la. Para liderar esses grupos, não bastava falar o que se queria ouvir: era preciso descobrir o que falar para que estas pessoas se sentissem acolhidas pelo discurso, mesmo tendo elas tão poucas palavras à sua disposição para conversar. E Lula passou sua vida buscando compreender esse discurso, até que conseguiu. Bem intencionado ou não, ele conseguiu com que todo aquele com dor e sem voz se visse incluído nos discursos da cúpula de poder político do país.
Dona Marisa foi a mulher que esteve mantendo uma família para Lula enquanto ele dedicou tempo a dar voz a milhões de oprimidos. Sem os recursos que a mulher de Paulo Skaf tem a sua disposição. Sem também todos os saberes refinados que as filhas da alta sociedade tem à sua disposição desde que nascem.
É agora, minhas queridas e queridos, que lhes convido a refletir sobre a pequenez humana. Se a família é um valor tão importante para nós a ponto de chamar de "Dona" uma matriarca, é dado a Dona Marisa o mérito de receber esse tratamento porque ela o foi, dignamente.
Se a família que ela matriarcou é a mesma que deu condições para que Lula, bem intencionado ou não, liderasse de modo a dar voz para expiar a dor de milhões de oprimidos, então há algo a mais de valor, de mérito. Reforço, para que o insensível compreenda, que estes oprimidos cuja dor é tamanha e cuja miséria é tanta, não conseguem lhes fazer sentido os discursos que explicam que não há dinheiro para se aposentar. Sua dor simplesmente é tanta, que não lhes restará força, nem emprego, nem vida, quando esse trabalho extra chegar, e é essa dor da morte miserenta e certa que querem expressar e que não encontram acolhida nas explicações frias e racionalizadas do ministro Meireles, cujo saber vem do domínio de contas complexas numa planilha de excel. É essa dor que Lula deu voz, e que Marisa o ajudou.
Mas há o lado político. Há os erros de um político que, apesar de seu mérito por ter liderado tendo sido bem ou mal intencionado, há os erros que políticos cometem. E há noticias bombardeadas o tempo todo para tentar lhe provar que Lula foi mal intencionado.
E, politicamente, para destruir o mito, nem o direito da presunção de inocência lhe foi atribuído. Lula já foi condenado na inquisição daqueles que nunca sentiram dor, ou daqueles cuja dor já esqueceram. E se Lula é culpado, então Dona Marisa também o é. E querem tirar-lhe a honra de uma morte respeitosa.
Quando morreu Dona Ruth Cardoso, cujo marido soberbamente se apresentava como um príncipe, cuja educação em Sorbone lhe concedia milhares de palavras para construir seus discursos e cujos saberes eram completamente adequados àquele grupo de pessoas bastante poderosas que reconhecem como líder Paulo Skaf, quando Dona Ruth morreu, Lula decretou três dias de luto oficial.
Agora, por conveniência política, a trajetória de Dona Marisa é relegada ao papel de esposa de político (odiamos políticos. Eles deveriam nos liderar para que conseguíssemos negociar com aqueles com quem não concordamos, para que alcancemos o bem comum. Mas eles estão nos liderando para que briguemos com quem não concordamos para que possam negociar entre si, em favor próprio). E como esposa de político que representou aqueles que não tem voz, qualquer voz que lhe apregoe dignidade é calada.
A verdade é a verdade. A realidade É, independente do quanto alguém esteja disposto a reconhece-la. E a realidade é que Dona Marisa foi esposa do líder, tanto quanto foi esposa de político. E assim como Dona Ruth Cardoso também foi esposa de político, e também foi tratada com dignidade, também assim deve se tratar Dona Marisa por todo aquele que tem a dimensão moral de uma pessoa normal.
Aquelas que não conseguem lhe perceber o valor, estas não tem a grandiosidade de alma que se espera de pessoas comuns. Estas tem a alma pequena.
É importante percebermos, nós mesmos, se nossa alma é pequena ou não. Podemos errar em nossas posturas. Podemos não reconhecer a realidade. Mas se diante da realidade continuamos negando o que é de valor alheio, então sim, somos torpes. Somos pequenos. E se justiça existe no mundo, então é justo que todo aquele de alma pequena seja amaldiçoado.
É o que explicava Fernando Pessoa, com quem vos deixo nessa singela reflexão.
"Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu."
Não esqueçam: Tudo vale a pena se a alma não é pequena!

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